segunda-feira, 28 de junho de 2010

Anjo da vida


Duas mulheres, uma anciã e uma jovem viúva, estão sentadas em um quarto, na penumbra. Seus vestidos de luto fazem com que dos seus rostos e mãos emane uma pálida claridade. As mãos da jovem seguram o retrato do marido que acaba de perder avida em um acidente. Tinham-no enterrado na manhã daquele dia. 

Por muito tempo as duas mulheres ficaram sentadas, sem palavras e sem lágrimas. Finalmente a anciã tira das mãos da neta o retrato do marido e diz com voz baixa: 

- Filha, ouve o que quero dizer-te. 

A jovem não responde, mas a anciã começa a falar: 

- Quando Deus me deu o primeiro filho, aconteceu que ele ficou doente e eu, sentada à noite ao seu lado, com uma mão no berço, adormeci. Tive um sonho muito estranho: detrás de uma cortina longa e densa saiu um anjo escuro e aproximou-se do berço, querendo levar o meu filho. Estendi logo as mãos sobre o berço e gritei: 

- Não, Morte, não te deixo levar o meu filho! 

O anjo sorriu e disse: 

- Não me chamo Morte, chamo-me vida! Precisarei levar o teu filho. Ou preferes trocar? Queres este em lugar do bebê? Erguendo ele a cortina, saiu de lá um menino bonito e forte, de pele clara, olhos azuis e cabelos louros em caracóis. Mas a mim era estranho e gritei: 

- Não, não o quero! Antes mata-me. 

Ninguém pode matar - replicou o anjo - Precisas concordar com a troca! Ou preferes este? 

O menino desapareceu e em seu lugar apareceu um jovem. 

- Toma este! Vê como ele é belo, seus membros bem proporcionados, corpo e alma com forças vibrantes. 

- Não, não! - gritei outra vez. 

E o anjo disse: 

- Mas este amarás com certeza. - E mostrou-me a imagem de um homem de 

barba escura, bronzeado pelo sol e pelos ventos. 

- Não, - voltei a gritar - nunca o amarei! Vou odiá-lo! 

- Mas este aqui - o anjo continuou a argumentar comigo: era um velho de ombros largos e cabelos grisalhos. 

- Não, não, não! Jamais trocarei. Vai embora e não toques no meu filhinho! 

O anjo sorriu outra vez, dizendo: 

- Certamente irás trocar e serás feliz. Vida e morte são uma coisa só. A morte não existe. 

Assim dizendo, desapareceu. Acordei trêmula, ao lado do berço do meu filho que estava dormindo tranqüilamente. 

Os anos passaram e eu fui trocando: o bebê pelo menino, o menino pelo jovem, o jovem pelo homem e o homem pelo velho. E fui me lembrando de cada um como o tinha visto no sonho. O grisalho, tu o conheces: é meu filho, teu pai! 

A anciã se calou. E a jovem viúva ergueu o retrato do marido, dizendo: - Mas isto aqui não é troca, é roubo! 

- Espera - disse a anciã - ainda não terminei. Na noite seguinte o sonho se repetiu. Vi outra vez o menino, o jovem, o homem e o velho e não quis saber nada deles. Mas, depois de mostrar-me tudo como na noite anterior, o anjo disse: 

- Até aqui era só por brincadeira. Agora precisas aceitar uma troca bem mais difícil: aceita este em troca! 

- Mas não vejo ninguém! - exclamei. 

- Não podes vê-lo - replicou o anjo. 

- Mas também não ouço ninguém. 

- Pois ele não se deixa ouvir - respondeu o anjo. 

Eu tateava ao redor: 

- Ninguém está aqui! 

E o anjo disse: 

- Tampouco podes palpá-lo. 

- Então zombas de mim ? 

- Não. Tu não me entendes. Vou falar de outra maneira. 

- Tu me darias os teus olhos em troca do filho? 

- Leva-os! - gritei. 

Logo caiu uma escuridão profunda sobre mim, mas ouvia ainda a respiração tranqüila do meu filho, como se fosse uma brisa noturna deliciosa. 

- Mas não é ainda suficiente - disse o anjo - Dá-me a tua audição. 

- Leva-a! - ordenei, e peguei o corpinho de meu filho com as duas mãos, beijando-o ternamente . 

- Mas ainda não é suficiente - exigiu o anjo novamente. 

- Dá-me todos os teus sentidos. 

- Leva-os todos! - gritei, e afundei no nada. 

- Onde está o meu filho? Onde? 

- Podes crer: ele vive. O que desaparece dos sentidos nem por isso está morto. A 

morte não existe para aqueles que tem Jesus como seu salvador, Deus criou só a vida. Entendes agora? 

A estas palavras do anjo acordei. Muitas vezes tenho meditado sobre o que o anjo disse, e paulatinamente comecei a compreender. Muitas vezes somos servos dos nossos sentidos. Mas Deus como Senhor dos mil sentidos consegue transformar o que amamos, mil vezes. São transformações que não nos permitem ver, nem ouvir, nem apalpar. É por isso que falamos da morte. 

Mas a morte não existe quando se tem Jesus como vida. 

A vida natural rouba, e dá sem cessar. Se soubermos isto, qualquer sofrimento poderá transformar-se em alegria antecipada . 

A anciã calou-se. Depois de algum tempo a jovem viúva repousou a cabeça nas mãos da velha, perguntando: 

- Quem te ensinou tudo isso, amada avó? 

- A vida, minha filha, a vida... 

E a anciã acrescentou: 

...e a morte! 

Evangelho segundo S. Mateus 8,18-22.

Vendo Jesus em torno de si uma grande multidão, decidiu passar à outra margem. Saiu-lhe ao encontro um doutor da Lei, que lhe disse: «Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores.» Respondeu-lhe Jesus: «As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.» Um dos discípulos disse-lhe: «Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar o meu pai.» Jesus, porém, respondeu-lhe: «Segue-me e deixa os mortos sepultar os seus mortos.» 

0 comentários:

Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial